Não, o foguete de Elon Musk não vai destruir a Lua

Você com certeza viu a notícia desse foguete. Como ela foi apresentada, depende do nível do veículo jornalístico que acompanha. Tabloides sensacionalistas chamaram “foguete desgovernado”, outros de lixo espacial, e os mais sensatos ignoraram completamente o caso, mas como a gente não paga as contas com sensatez, vamos lá…

Vamos Todos Morrer! (Crédito: MeioBit / Editoria de Arte)

Tudo começou em 11 de fevereiro de 2015, quando a SpaceX ainda engatinhava. Eles conseguiram um lucrativo contrato para lançar o DSCOVR, Deep Space Climate Observatory, um satélite meteorológico da NOAA, National Oceanic and Atmospheric Administration, uma agência que seria mais ou menos equivalente ao lado de pesquisas atmosféricas e climáticas do INPE, mas com orçamento de gente grande.

O lançamento foi perfeito, as únicas críticas foram à tentativa da SpaceX de tentar pousar seu foguete em uma balsa. Veja você, ninguém nunca fez isso antes por um bom motivo, e era quase consenso que estavam jogando dinheiro fora com essa idéia besta.

O DSCOVR é um satélite projetado para fazer observações de longo prazo, tanto da Terra quanto do Sol. Ele é nossa primeira linha de defesa em caso de tempestades magnéticas, e para isso ele foi posicionado bem longe, além da Lua, e ele nem sequer orbita a Terra.

Levado pelo segundo estágio do foguete Falcon 9, o DSCOVR foi colocado em um chamado Ponto Lagrange, que eram uma mera curiosidade matemática no Século XVIII, quando foram descobertos.

A 1,5 milhões de km da Terra, uma das câmeras da DSCOVR testemunhou essa linda passagem da Lua:

Inicialmente descobertos por Leonhard Euler, os chamados pontos Lagrange acabaram associados ao nome de Louis Lagrange, que em 1772 publicou uma pesquisa onde demonstrava a existência de mais dois pontos especiais, L4 e L5. Euler havia descobrido L1, L2 e L3, mas que diabos afinal é um Ponto Lagrange?

Quando temos um corpo de massa considerável orbitando outro corpo igualmente ou mais massivo, em alguns pontos no espaço entre eles a atração gravitacional dos dois corpos se anula, formando um ponto de estabilidade. Um objeto colocado ali está em equilíbrio.

Um satélite no ponto Lagrange L1 no Sistema Sol-Terra, a 1,5 milhões de km da Terra tecnicamente está mais próximo do Sol, e deveria ter um período orbital diferente do nosso, mas como está sendo atraído pela nossa gravidade, ele é “arrastado”, produzindo perturbações que o fazem descrever círculos como se orbitasse um ponto vazio no espaço.

Pontos Lagrange do Sistema Sol-Terra. As distâncias estão obviamente comprimidas. (Crédito: Xander89/Wikimedia Commons)

A principal vantagem dos Pontos Lagrange, é que satélites colocados nele precisam de bem pouca correção para se manterem no mesmo ponto, isso economiza combustível e aumenta sua vida útil. A desvantagem é que os pontos Lagrange são longe bagarai.

O segundo estágio do foguete da SpaceX teve que usar todo seu combustível para acelerar o DSCOVR para que ele conseguisse chegar ao Ponto Lagrange L1, e quando chegaram lá, o pobre Falcon 9 estava só no cheiro.

A órbita do Telescópio Espacial James Webb, no Ponto Lagrange L2 (Crédito: Live Science)

Chegando lá cada um seguiu seu caminho, o satélite foi para sua posição exata, usando propulsão própria, e o segundo estágio passou pelo chamado processo de passivação, quando o combustível remanescente é ejetado, junto com gases de manobra e Hélio de pressurização. Os tanques são expostos ao vácuo, e as baterias são drenadas, para que nada dê errado e o estágio exploda, como já aconteceu mais de uma vez com satélites desativados.

Esse é o procedimento normal, com satélites que ficam nos Pontos Lagrange. 100% deles foram acompanhados de seus segundos ou terceiros estágios. Sondas interplanetárias, em geral atingem velocidade de escape com auxílio dos estágios superiores dos foguetes, e esses estágios também deixam a órbita da Terra, ficando para sempre perdidos no espaço.

Somente segundos estágios de foguetes que tem como alvo a órbita baixa da Terra se dão ao luxo de sofrer uma reentrada posterior, sendo destruídos na alta atmosfera.

Mas o que aconteceu com o foguete da SpaceX afinal?

Ah, aqui foi um evento bem raro.

O segundo estágio ficou no Ponto Lagrange, mas mesmo sendo estável, ele não é 100% estável, então o estágio foi sofrendo interferência da gravidade da Lua, gradualmente foi se movendo para regiões mais instáveis, e acabou sob influência do poço gravitacional lunar.

O segundo estágio de um Falcon 9. Só essa parte em vermelho. (Crédito: SpaceX)

Que conste nos autos que não houve nada de errado com o foguete, ele ficou no Ponto Lagrange por necessidade. Ele não tinha combustível suficiente para acelerar o DSCOVR até seu destino, e depois desacelerar para reentrar na atmosfera da Terra. Era parte do projeto que ele fosse abandonado no esp, que que como já falamos, é muito, muito grande.

Depois de sete anos de movimentação caótica e imprevisível, o segundo estágio do foguete, com 10 metros de comprimento e pesando quatro toneladas, entrou em uma trajetória que o fará se chocar com a superfície da Lua dia 4marçoarço de 2022, depois de várias passagens de raspão.

O impacto atingirá a cratera Hertzsprung, uma formação com 520 km de diâmetro, no lado oculto da Lua. Ou lado distante, se quisermos ser pedantes. Escuro nunca, isso é coisa do Pink Floyd.

Então, o que temos até agora? Um segundo estágio de foguete, se movendo a 2.58Km/s vai atingir uma cratera com energia equivalente a 3 toneladas de TNT. Em que isso afeta a Lua?

Vamos fazer uma comparação. Esta aqui é a famosa Meteor Crater, no Arizona. Ela é enorme. Tem pouco mais de 1Km de diâmetro. Foi criada 50 mil anos atrás quando um meteoro com 50 metros de diâmetro atingiu o solo com energia equivalente a dez milhões de toneladas de TNT.

Meteor Crater, Arizona (Crédito: PLBechly / Wikimedia Commons)

O segundo estágio da SpaceX atingirá a Lua com o equivalente a 3 toneladas de TNT.

Portanto, apesar da histeria no Reddit, um foguete de 4 toneladas não é exatamente preocupante atingindo um satélite natural de 73480000000000000000000 toneladas.

Nenhuma maré vai ser afetada, a órbita da Lua não vai ser afetada. Quer dizer, vai, se você considera uma alteração de velocidade orbital de 4.29 nanômetros por ano alteração… e só para avisar, um nanômetro equivale a 0.000000001 metros.

Em termos de Ciência, esse impacto é interessante, mas não é nada demais. Não haverá nenhuma sonda orbital bem posicionada para observar o impacto, e a luz não vai ajudar.

As últimas órbitas do segundo estágio do Falcon 9. Em verde a órbita da Lua, em preto, a do foguete. (Crédito: Project Pluto)

Também não é nada inédito esse tipo de impacto. Várias agências espaciais vêm lançando sondas contra a Lua faz tempo, a primeira foi a russa Luna 2, em 1959. No total foram 16 missões de impacto, a última em 2019.

Uma das mais famosas foi a Lunar Crater Observation and Sensing Satellite (LCROSS), quando o segundo estágio, um Centaur, foi lançado deliberadamente contra a Lua, seguido pela sonda, que atravessou a pluma de detritos da detonação equivalente a quase duas toneladas de TNT.

Fora isso, quase todos os terceiros estágios dos foguetes Saturno V se chocaram com a Lua. Com 17.81 metros de comprimento e mais de 13 toneladas, nem eles conseguiram destruir nosso indefeso satélite.

Ah sim: os módulos de subida das missões Apollo, que levaram os astronautas foram todos colocados em rota de colisão com a Lua, exceto o da Apollo XI, que aparentemente ainda está em órbita.

As “acusações” de que a SpaceX “deixou” seu estágio colidir com a Lua são ridículas, bem como o pessoal dizendo que estão “jogando lixo” na Lua. É o equivalente a reclamar que alguém jogou um selo postal (pergunte a seus pais) de um avião e está sujando a cidade de São Paulo.

O único ponto realmente interessante da história é que o espaço é grande, muito grande, e nós lançamos quase nada no espaço, então foi uma sorte muito grande esse estágio entrar nessa rota de colisão, mas no geral desconsiderando a origem do objeto, isso não tem nada de fora do comum.

Lembre-se, cada cratera na superfície da Lua, das com centenas de quilômetros até as que cabem na palma de sua mão, cada uma delas foi criada pela colisão com um objeto aleatório, imprevisível e altamente energético.

E esses impactos são tão comuns que de vez em quando alguém consegue filmar um, como esse lindo e poderoso meteoro atingindo a Lua, em 2019. Coincidentemente, e fechando o círculo deste artigo, bem na cratera Lagrange G.

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